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domingo, 2 de fevereiro de 2014



A Dona do Boteco

O nome dela era Eulália. Eulália Almodóvar. E ela era a dona do Boteco.

Eulália veio da Espanha com os pais ainda bebê. E o Brasil sempre foi para ela algo estrangeiro.

O pai, agricultor, cruzou o atlântico atrás de um sonho. Queria ser comerciante. A família estabeleceu-se no bairro do Estácio no Rio de Janeiro. E era lá que ficava o Boteco.

Com 8 anos, Eulália já freqüentava o Boteco. Saía da escola e corria para lá. Ela gostava de olhar as gentes. Ajudava o Pai a arrumas as mesas, a lavar a louça... mas ia mesmo para olhar as pessoas. Eulália gostava de gente.

Aprendeu cedo que o pai gostava de tudo muito limpo. E a limpeza, de alguma forma, era uma maneira de agradar a ele para que permitisse a presença dela no Boteco.

Ela nunca entendeu por que o Pai quis ter o Boteco.

O Pai não gostava de barulho. Incomodava a ele que as pessoas rissem ou falassem alto. Música era algo que não existia no Boteco. O Pai não gostava. As paredes eram muito brancas. Brancas de limpeza e limpas de cores. A única coisa colorida que havia no Boteco eram uns ovos cozidos que Eulália arrumava encantada no balcão. O Pai não gostava de cores.

Aos doze anos, Eulália já ajudava a servir as mesas. O Pai ensinou-a a manter as sobrancelhas franzidas e a boca esticada num risco. Dizia que isso afastava o assédio dos bêbados.

A boca teria ficado esticada para sempre, fosse ela outra menina. Mas Eulália tinha um riso que era largo e solto. Seria impossível manter aquela risada afivelada por tempo demais - ainda que a pedido do Pai.

No dia em que o Pai morreu, a Mãe quis vender o Boteco, mas Eulália não deixou.

Para a mãe, ela disse que não queria se desfazer do sonho do Pai. Convenceu-a de que não fazia sentido terminar a Escola de Formação de Professores em busca de uma profissão, quando havia o negócio da família para cuidar.

Isso foi que ela disse para a mãe. Era mais fácil do que contar que nunca passou pela cabeça dela ser professora. E que sempre quis ser a dona do Boteco.

Foi assim que Eulália Almodóvar largou a escola com 17 anos e assumiu o Boteco. E agora que ela era a dona do Boteco, podia fazer dele o que quisesse.

Ela pendurou xales espanhóis nas paredes do Boteco. Coloridos, viçosos, com franjas... vermelho, amarelo, azul.... Eulália adorava cores. E agora ela era a dona do Boteco. Portanto, haveria cores.

Ela colocou música no Boteco. Eulália adorava música. Estavam no Estácio. E talvez o normal fosse que houvesse samba como em qualquer outro boteco do Estácio. Mas Eulália gostava mesmo era de música flamenca. E agora ela era a dona do Boteco. Portanto, haveria música e dança flamenca.

Ela manteve o mobiliário original. Simples e de madeira escura. Um pouco por tributo ao pai, um pouco por recordação da infância. Quem perguntava a ela o motivo, recebia uma gargalhada em resposta. E Eulália dizia: "Agora eu sou a dona do Boteco. E faço dele o que eu quiser"

As pessoas estranharam um pouco no início.

Um Boteco muito simples e muito limpo no Estácio com música e dança Flamenca e xales coloridos pendurados nas paredes. Mas era isso o que mantinha a casa sempre cheia. Isso e o riso escancarado da dona do Boteco.

O nome dela era Eulália Almodóvar. Ela gostava de cores, de música, de gentes e de riso.

E ela era agora a dona do Boteco.


(Flávia Côrtes - Fevereiro de 2014)

Nota da Autora:

Este é o meu primeiro conto com personagem criado e concebido.

Agradecimento especial a Patricia Carvalho-Oliveira e ao seu curso Lupa - O ator consciente, que abriu em mim um canal que eu não conhecia ainda.

Eulália Almodóvar é minha primeira personagem. Eu nunca criei antes uma personagem na vida. Hoje eu concebi e ainda encarnei no curso de teatro. E escrevo o conto para tirá-la de dentro de mim... ;)

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