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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014


Sobre vôos e nuvens

Ele tinhas asas
e eu, às vezes, virava nuvem.

Eu dormia sono solto
quando ele me escrevia.

Eu telefonava
quando ele não estava.

Ele voava alto
e eu ainda era terra.

Eu virava nuvem
e ele já estava chão.

Mas os dois,
de formas diferentes,
saltavam no azul.

Ele de corpo inteiro e asas.
Eu de alma alada e pensamento solto.

Talvez por isso
nos reconhecêssemos.

Talvez por isso
seguíssemos serenos
no tempo
enquanto nossos ponteiros
se alinhavam.

Levávamos a tranqüilidade
dos que já se sabem.

O tempo nunca é só um " quando'

quando já se sabe um "ainda".

E o tempo já era tão nosso.

(Flávia Côrtes - fevereiro de 2014)

sábado, 22 de fevereiro de 2014



Azul de Renoir


Se eu fosse pintora,
diante de um céu assim...

Mas eu sou poeta.
E, hoje, nem acordei
tão poeta assim.

Mas, ainda assim,
o azul sempre sabe
o caminho para dentro de mim.


(Flávia Côrtes - fevereiro de 2014)



domingo, 9 de fevereiro de 2014


Física Moderna

Os ponteiros subitamente
giram insanos.

Cada hora parece menor
ou duram os minutos menos tempo?

As pessoas,
carbono que são,
sob pressão viram carvão
ou diamante.

Tem gente que opaca.
Tem gente que brilha.

É que gente não é só matéria.

Nem toda mudança
é proporcional à força
quando o que te move
é ação
e não reação.

Nem toda aceleração é fruto da força.
Nem tudo o que repousa estagna.

Mas o movimento
movimenta.

(Flávia Côrtes - fevereiro de 2014)







terça-feira, 4 de fevereiro de 2014


Poema de Verão

Deus quando inventou a melancia
estava de bom humor.

Tem algo mais lúdico de comer
do que melancia?

Vermelha, gelada, doce.
Crocante sem deixar de ser macia.

Os carocinhos existem
para você prestar atenção
e ir devagar.

Estão ali para te lembrar
que mesmo o que é doce e colorido,
com pressa, pode te engasgar.

(Flávia Côrtes - Fevereiro de 2014)

domingo, 2 de fevereiro de 2014



A Dona do Boteco

O nome dela era Eulália. Eulália Almodóvar. E ela era a dona do Boteco.

Eulália veio da Espanha com os pais ainda bebê. E o Brasil sempre foi para ela algo estrangeiro.

O pai, agricultor, cruzou o atlântico atrás de um sonho. Queria ser comerciante. A família estabeleceu-se no bairro do Estácio no Rio de Janeiro. E era lá que ficava o Boteco.

Com 8 anos, Eulália já freqüentava o Boteco. Saía da escola e corria para lá. Ela gostava de olhar as gentes. Ajudava o Pai a arrumas as mesas, a lavar a louça... mas ia mesmo para olhar as pessoas. Eulália gostava de gente.

Aprendeu cedo que o pai gostava de tudo muito limpo. E a limpeza, de alguma forma, era uma maneira de agradar a ele para que permitisse a presença dela no Boteco.

Ela nunca entendeu por que o Pai quis ter o Boteco.

O Pai não gostava de barulho. Incomodava a ele que as pessoas rissem ou falassem alto. Música era algo que não existia no Boteco. O Pai não gostava. As paredes eram muito brancas. Brancas de limpeza e limpas de cores. A única coisa colorida que havia no Boteco eram uns ovos cozidos que Eulália arrumava encantada no balcão. O Pai não gostava de cores.

Aos doze anos, Eulália já ajudava a servir as mesas. O Pai ensinou-a a manter as sobrancelhas franzidas e a boca esticada num risco. Dizia que isso afastava o assédio dos bêbados.

A boca teria ficado esticada para sempre, fosse ela outra menina. Mas Eulália tinha um riso que era largo e solto. Seria impossível manter aquela risada afivelada por tempo demais - ainda que a pedido do Pai.

No dia em que o Pai morreu, a Mãe quis vender o Boteco, mas Eulália não deixou.

Para a mãe, ela disse que não queria se desfazer do sonho do Pai. Convenceu-a de que não fazia sentido terminar a Escola de Formação de Professores em busca de uma profissão, quando havia o negócio da família para cuidar.

Isso foi que ela disse para a mãe. Era mais fácil do que contar que nunca passou pela cabeça dela ser professora. E que sempre quis ser a dona do Boteco.

Foi assim que Eulália Almodóvar largou a escola com 17 anos e assumiu o Boteco. E agora que ela era a dona do Boteco, podia fazer dele o que quisesse.

Ela pendurou xales espanhóis nas paredes do Boteco. Coloridos, viçosos, com franjas... vermelho, amarelo, azul.... Eulália adorava cores. E agora ela era a dona do Boteco. Portanto, haveria cores.

Ela colocou música no Boteco. Eulália adorava música. Estavam no Estácio. E talvez o normal fosse que houvesse samba como em qualquer outro boteco do Estácio. Mas Eulália gostava mesmo era de música flamenca. E agora ela era a dona do Boteco. Portanto, haveria música e dança flamenca.

Ela manteve o mobiliário original. Simples e de madeira escura. Um pouco por tributo ao pai, um pouco por recordação da infância. Quem perguntava a ela o motivo, recebia uma gargalhada em resposta. E Eulália dizia: "Agora eu sou a dona do Boteco. E faço dele o que eu quiser"

As pessoas estranharam um pouco no início.

Um Boteco muito simples e muito limpo no Estácio com música e dança Flamenca e xales coloridos pendurados nas paredes. Mas era isso o que mantinha a casa sempre cheia. Isso e o riso escancarado da dona do Boteco.

O nome dela era Eulália Almodóvar. Ela gostava de cores, de música, de gentes e de riso.

E ela era agora a dona do Boteco.


(Flávia Côrtes - Fevereiro de 2014)

Nota da Autora:

Este é o meu primeiro conto com personagem criado e concebido.

Agradecimento especial a Patricia Carvalho-Oliveira e ao seu curso Lupa - O ator consciente, que abriu em mim um canal que eu não conhecia ainda.

Eulália Almodóvar é minha primeira personagem. Eu nunca criei antes uma personagem na vida. Hoje eu concebi e ainda encarnei no curso de teatro. E escrevo o conto para tirá-la de dentro de mim... ;)