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terça-feira, 23 de novembro de 2010


E essa história me veio inteira na memória...

Quando eu tinha 12 anos, indo para a escola, um menino de rua cruzou comigo e me deu um olhar de raiva e um tapa. O tapa doeu. O olhar doeu. Nunca ninguém havia me odiado antes.

Minha mãe me contou que a raiva do menino não era de mim. Era de todo mundo. E que o tapa não era em mim. Era na vida. Eu não entendi bem o que eu tinha com isso, já que não me batizaram “Vida” e eu nunca havia machucado ninguém. Minha mãe me disse que um dia eu entenderia o menino e aceitaria os motivos dele.

Eu cresci. Entendi o menino. Os motivos...? Entender não é aceitar.

Novembro de 2010
Reflexão sem Rumo

O problema de esperar o ônibus certo é que, se ele demorar muito, me dá uma vontade doida de entrar no errado.

Novembro de 2010


O nome dela é Ana Júlia

Confesso que o que me chamou a atenção nela foi o laço no cabelo. Um laço pequeno, cor de rosa choque, enfeitando o cabelo curtinho e penteado. Olhos risonhos no rosto sério, como se estar triste fosse tarefa árdua e recomendada.

“Tia, me dá um dinheiro prá eu comprar leite pro meu irmão?”

O bebê no colo da menina dormia serenamente, alheio ao tumulto em frente à galeteria onde eu esperava a minha vez de comprar frango para o almoço de domingo.

Pousei os olhos na menina . Não tinha mais de 12 anos. Pensei se o bebê era filho ou irmão. Reparei na roupa limpa e arrumadinha. E no laço cor de rosa.

Perguntei num sussurro, como quem se aproxima de passarinho que pousa perto de manhazinha: “Ele é seu irmão, menina?”

A menina assentiu com a cabeça.

“Cadê a sua mãe?”

O dedo indica a esquina. “Tá ali com os meus irmãos.”

“Vocês são quantos?”

“Oito.”

“Você é a mais velha?”

“Não. Tem dois grandões.”

“Olha, dinheiro eu não te dou, não. Mas, se você quiser, eu te compro um frango. Você quer?”

O sorriso se abriu deixando, enfim, o rosto combinar com os olhos.

“Quero! Aí eu arrumo um guaraná e já dá prá gente almoçar.”

“Então, espera que eu compro o frango prá você.”

A menina esperou do meu lado, brincando com o bebê, agora acordado, como se fosse uma boneca. Conversava com ele alguma coisa que só os dois escutavam. E pareciam se entender bem.

“Olha só como ele entende, Tia.... Ju.. Ju...”

O neném arregalava os olhos quando ela o chamava pelo nome.

“Qual o seu nome, menina?”

“Ana Júlia.”

“Bonito nome.”

“Obrigada!”

Achei a menina educadinha.

“Você tá na escola, Ana Júlia?”

Negou com a cabeça... “Eu não tenho registro.”

Chegou a minha vez. Pedi os frangos. O meu e o da Ana Júlia. Comprei os refrigerantes. O meu diet, o dela normal. Pedi para embrulhar separado e entreguei o dela.

“Escuta, Ana Júlia, deixa eu te dizer uma coisa. Na escola você não tem só estudo, você tem merenda. Eles te dão almoço e lanche. Se um dia você passar em frente a uma escola, entra e procura a diretora. Conta para ela que você quer estudar e não tem registro. Ela vai te ajudar, tá? Toma. Este é seu”. Entreguei o almoço a ela.

“Obrigada, Tia.”

O “obrigada” era pelo frango. Eu queria que fosse pelo conselho. Queria que fosse porque eu olhei para ela como “Ana Júlia”, não como um número. Mas era pelo frango. Não tinha como ser por outra coisa além do frango. Que menino ou menina, de qualquer lugar, pensa em estudar ou em conversar quando está com fome?

Pensei na estatística oficial: mais de 95% das crianças brasileiras nas escolas. Está bem! 95% das crianças registradas. Como saber das milhares que transitam pelas ruas e simplesmente não têm registro. Estão fora das estatísticas.

O nome dela é Ana Júlia. E ela não é um número.

Novembro de 2010