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quarta-feira, 17 de junho de 2009


A normalidade é chata.
TEXTO 1 - Do que gosta uma menina?


Desde muito cedo, as lembranças se misturaram às palavras.

Não tinha mais do que três anos e a avó a levava pela mão até o jornaleiro. Iam comprar um livro de colorir. A menina saltava os paralelepípedos, de dois em dois, e o sol transbordava raios dourados por entre as folhas das amendoeiras. Sabia que a cada desenho pintado, o avô contaria uma estória. Achava bom colorir os desenhos, mas não era por eles a excitação. O que a encantava mesmo eram as estórias do avô.

Devia ter uns quatro anos e o corpo pequeno de menina estava deitado no sofá verde da sala. Não queria terminar o leite. Preferia brincar. Lembra de ter dito ao avô que estava com dor de barriga. Lembra também do sorriso dele quando perguntou se queria ouvir uma estória enquanto terminava a mamadeira. Ela quis.

A menina estava no banco de trás do carro falando sozinha. A mãe percebeu que não eram as estórias de costume. Levou apenas um momento para notar que lia em voz alta os letreiros das lojas. Tinha cinco anos e os pais descobriram que ela aprendera a ler.

Aos oito anos passou um mês dentro do quarto depois do seu aniversário. O pai a presenteou com a coleção completa de Monteiro Lobato e ela simplesmente não conseguia se separar da Emília que, diga-se de passagem, era imensamente mais interessante que a Narizinho.

No mesmo ano, uma pneumonia deixou a menina uma semana no hospital. Não queria ficar quieta no quarto e os pais negociaram com ela: um livro para cada injeção. Saiu de lá com 40 livros novos e não se lembra até hoje das injeções. Mas recorda-se com clareza de ter voado pela primeira vez com a Sininho naquela semana. A chata da Wendy preferiu ficar cuidando dos meninos.

Gostava de brincar de bonecas com a irmã, mas as suas sempre foram mais despenteadas e sujas... o que ela podia fazer se as bonecas gostavam de brincar na rua?

Sempre achou mais interessante sair em aventuras com o irmão. Percorriam países inteiros pedalando pelo quarteirão, descobriam esconderijos de espiões nos prédios vizinhos, encontravam passagens secretas em obras inacabadas, escalavam muros de castelos na vizinhança, invadiam fortalezas escondendo-se dos guardas na fábrica do fim da rua...

E as folhas das árvores eram peixes... e os bonecos de nuvens dançavam quando ela cantava para eles... e os passarinhos traziam estórias interessantíssimas de sua viagens...

Tinha 10 anos quando os pais deram a ela um caderno para escrever o que quisesse.

Da infância, lembra-se bem de três presentes: um urso que dormia com ela, os livros que trouxeram a Emília e aquele caderno. Ela não sabia ainda, mas nem o urso nem a Emília iam poder ajudá-la nos anos seguintes... seria o caderno a salvá-la.

Era uma menina feliz. Nunca percebeu que gostava de fazer coisas que a maioria das outras crianças não gostava.

Junho de 2009
Esse é o primeiro de dois textos. Faz parte desse grupo de contos também o texto "Do que gosta uma mulher?"

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